segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

3ª SESSÃO - 8 NOVEMBRO


Como se viajava no séc. XIX em Portugal?
Cruzamento de referências textuais...



VIAGENS NA MINHA TERRA

Às vezes, passo horas inteiras 
Olhos fitos nestas braseiras, 
Sonhando o tempo que lá vai; 
E jornadeio em fantasia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pai.

Que pitoresca era a jornada!
Logo, ao subir da madrugada,
Prontos os dois para partir:
- Adeus! adeus! é curta a ausência,         
Adeus! - rodava a diligência
Com campainhas a tinir!

E, dia e noite, aurora a aurora,
Por essa doida terra fora,
Cheia de Cor, de Luz, de Som,
Habituado à minha alcova
Em tudo eu via coisa nova,
Que bom era, meu Deus! que bom!

Moinhos ao vento! Eiras! Solares!
Antepassados! Rios! Luares!
Tudo isso eu guardo, aqui ficou:
Ó paisagem etérea e doce,
Depois do Ventre que me trouxe
A ti devo eu tudo que sou!

No arame oscilante do Fio,
Amavam (era o mês do cio)
Lavandiscas e tentilhões...
Águas do rio vão passando
Muito mansinhas, mas, chegando
Ao Mar, transformam-se em leões!

Ao Sol, fulgura o Oiro dos milhos!
Os lavradores mai-los filhos
A terra estrumam, e depois
Os bois atrelam ao arado
E ouve-se além, no descampado
Num ímpeto, aos berros: - Eh! bois!

E, enquanto a velha mala-posta,
A custo vai subindo a encosta
Em mira ao lar dos meus Avós,
Os aldeãos, de longe, alerta,
Olham pasmados, boca aberta...
A gente segue e deixa-os sós.

Que pena faz ver os que ficam!
Pobres, humildes, não implicam,
Tiram com respeito o chapéu;
Outros, passando a nosso lado,
Diziam: "Deus seja louvado!"
"Louvado sejal" dizia eu.

E, meiga, tombava a tardinha... 
No chão, jogando a vermelhinha, 
Outros vejo a discutir.
Carpiam, místicas, as fontes... 
Água fria de Trás-os-Montes 
Que faz sede só de se ouvir!

E, na subida de Novelas,
O rubro e gordo Cabanelas
Dava-me as guias para a mão:
Isso... queriam os cavalos!
Que eu não podia chicoteá-los...
Era uma dor de coração…

Depois, cansados da viagem,
Repousávamos na estalagem
(Que era em Casais, mesmo ao dobrar... )
Vinha a Srª Ana das Dores
"Que hão de querer os meus Senhores?
Há pão e carne para assar..."




Oh! ingénuas mesas, honradas!
Toalhas brancas, marmeladas,
Vinho virgem no copo a rir...
O cuco da sala, cantando. . .
(Mas o Cabanelas, entrando,
Vendo a hora: "É preciso partir").

Caía a noite. Eu ia fora,
Vendo uma estrela que lá mora,
No Firmamento português:
E ela traçava-me o meu fado
"Serás Poeta e desgraçado!"
Assim se disse, assim se fez.

Meu pobre Infante, em que cismavas,
Por que é que os olhos profundavas
No Céu sem-par do teu País?
Ias, talvez, moço troveiro,
A cismar num amor primeiro:
Por primeiro, logo infeliz...

E o carro ia aos solavancos.
Os passageiros, todos brancos,
Ressonavam nos seus gabões:
E eu ia alerta, olhando a estrada,
Que em certo sítio, na Trovoada,
Costumavam sair ladrões.

Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha!
Fazer parte duma quadrilha,
Rondar, à Lua, entre pinhais!
Ser Capitão! trazer pistolas,
Mas não roubando, - dando esmolas
Dependuradas dos punhais ...

E a mala-posta ia indo, ia indo.
o luar, cada vez mais lindo,
Caía em lágrimas, - e, enfim,
Tão pontual, às onze e meia,
Entrava, soberba, na aldeia
Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!

Lá vejo ainda a nossa Casa
Toda de lume, cor de brasa,
Altiva, entre árvores, tão só!
Lá se abrem os portões gradeados,
Lá vêm com velas os criados,
Lá vem, sorrindo, a minha Avó.

E então, Jesus! quantos abraços!
- Qu'é dos teus olhos, dos teus braços,
Valha-me Deus! como ele vem!
E admirada, com as mãos juntas,
Toda me enchia de perguntas,
Como se eu viesse de Belém!

- E os teus estudos, tens-me andado?
Tomara eu ver-te formado!
Livre de Coimbra, minha flor!
Mas vens tão magro, tão sumido...
Trazes tu no peito escondido,
E que eu não saiba, algum amor?

No entanto entrava no meu quarto:
Tudo tão bom, tudo tão farto!
Que leito aquele! e a água, Jesus!
E os lençóis! rico cheiro a linho!
- Vá, dorme, que vens cansadinho.
Não adormeças com a luz!

E eu deitava-me, mudo e triste.
(- Reza também o Terço, ouviste?)
Versos, bailando dentro em mim...
Não tinha tempo de ir na sala,
De novo: - Apaga a luz! - Que rala!
Descansa, minha Avó, que sim!

Ora, às ocultas, eu trazia
No seio, um livro e lia, lia,
Garrett da minha paixão...
Daí a pouco a mesma reza:
- Não vás dormir de luz acesa,
Apaga a luz! ... (E eu ainda... não!)

E continuava, lendo, lendo...
O dia vinha já rompendo,
De novo: - Já dormes, diz?
- Bff!... e dormia com a idéia
Naquela tia Dorotéia,
De que fala Júlio Dinis.

Ó Portugal da minha infância,
Não sei que é, amo-te a distância,
Amo-te mais, quando estou só...
Qual de vós não teve na Vida
Uma jornada parecida,
Ou assim, como eu, uma Avó?

[António Nobre
Paris, 1892]


* * * 

A DEITA


«O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava o auxílio de cadeira para trepar acima dele, uma cómoda com um pequeno espelho, um baú, um lavatório e duas cadeiras mais, constituíam a mobília toda.
Henrique de Souselas sentiu a falta de mil pequenos objectos de toucador, a que estava habituado. Aquele estritamente necessário não lhe prometia grandes confortos.
Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvíssimo e respirava um asseio e frescura convidativos: os travesseiros, de largos folhos engomados, possuíam ma moleza agradável às faces; o colchão de penas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado. Henrique conchegou a roupa a si; à falta de velador, pousou o castiçal no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, pôs-se a ler, para obedecer a um hábito adquirido.
Não teria ainda lido um quarto de página, quando ouviu a voz da tia Doroteia, que lhe dizia de fora da porta:
— Ó menino, tu já te deitaste?
— Já, sim, tia Doroteia.
— Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um medo de fogos!
— Esteja descansada, tia. Eu apago já.
— Então será melhor. S. Marçal nos acuda. E afastou-se, rezando ao santo.
Henrique continuou a ler.
Daí a pouco a mesma voz:
— Tu já dormes, Henriquinho?
— Não, tia, ainda não durmo.
— Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um medo de fogos! Não descanso enquanto não vejo tudo apagado em casa.
Henrique perdeu a paciência.
— Pois pode sossegar, olhe.
E apagou a vela, meio zangado.
— Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por dormir. Então, muito boas noites.
— Muito boas noites — respondeu Henrique quase amuado; e ajeitando--se na cama, dizia consigo: — E esta! Já vejo que nem ler me é permitido aqui. Olhem que vida me espera! É isto o que me devia curar? Que fatalidade!
Dentro em pouco os dois felpudos cobertores de papa, únicos que con­servava dos cinco primitivos, começaram a fazer o seu efeito, insinuando nos membros cansados da jornada um agradável calor. Convidavam ao sono o som da água num tanque que ficava por debaixo das janelas do quarto e as gotas da chuva, que dos beirais do telhado caíam compassadas na tábua do peitoril.
A noite sossegara. De quando em quando apenas algumas lufadas de vento, já menos impetuosas, faziam bater as vidraças.
Eram como estes estados, que sucedem a um choro aberto. Correm ainda algumas lágrimas nas faces, mas já não brotam novas dos olhos: saem ainda do peito os soluços, porém mais espaçados; dentro em pouco será completa a serenidade.
Henrique começou a experimentar uma languidez, um delicioso bem-estar naquele confortável leito e no meio daquele sossego; fecharam-se-lhe enfraque­cidos os olhos, e deslizou suave, insensivelmente, no mais profundo, tranquilo e restaurador sono, que, havia muito tempo, tinha dormido.»


A MORGADINHA DOS CANAVIAIS
Júlio Dinis
Cap. I







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