Na sessão do dia 18 de Abril lemos várias passagens do livro de Bernardo Santareno "NOS MARES DO FIM DO MUNDO".
Aqui fica um desses textos, bem expressivo do estilo do autor:
CHAMADA DE URGÊNCIA
Foi no
«Bissaia Barreto». Mensagem angustiosa do capitão, pela telefonia: Um homem de
convés ferido, com uma faca de escalar. Golpe fundo, hemorragia abundante.
Imediatamente, os dois navios, o «Bissaia» e o «Melgueiro»,
recolheram as redes e largaram ao encontro um do outro, com a rapidez possível.
Num instante, eu e o enfermeiro nos aprontámos. Quanto a mim, ansioso, mesmo
aflito: Qual a gravidade autêntica do caso? Poderia resolver?...
Uma vez convenientemente aproximados os dois
barcos, era ainda necessário percorrer, num pequeno bote, o mar que os
separava: ondas altas, mas ainda não verdadeiramente perigosas. Neve caindo
sempre, cada vez mais cerrada. Gelo disperso pelo mar, em pequenos blocos.
Lá fomos. Escuros de névoa, o céu, o mar e o ar; escura também a
minha alma, de apreensão.
Mal chegado, levaram-me logo para uma minúscula enfermaria: a minha
ansiedade crescia, dolorosa. No beliche único, um homem novo estendido. Sangue
nas roupas do ferido, nas cobertas da cama, até no chão. Observei o golpe: a
faca passara entre as costelas, um pouco abaixo da ponta do coração.
Hemo-pneumotórax? Pela auscultação, pareceu-me que sim.
Então, fixei profundamente o doente: cerca de vinte anos, pálido de
anemia e de angústia, dois olhos grandes límpidos e macerados, finos os lábios
convulsivamente apertados...
Tentativa de suicídio, é claro.
Na carne branco-azulínea do peito estreito,
logo abaixo do coração, aquela flor de fogo tinha qualquer coisa de marca sagrada,
de mutilação ritual: marca de inadaptados, frágeis, solitários e desesperados.
Mandei esterilizar o material, para fazer a
sutura da ferida: O rapaz, assustado, seguia-me com a vista... Por fim, o receio quebrou-lhe o mutismo:
—Vai coser?...
Sosseguei-o: não sentiria nada. Pobre
mocito! Impossível não o acarinhar: era uma criança! E as pestanas enormes lutavam
para reter a paixão das suas lágrimas...
Soube que, frequentemente, sucumbia a
ataques espasmódicos, durante os quais perdia os sentidos: epiléptico? Agora,
um sentimento dominava toda a sintomatologia: um medo patológico, um
entranhado terror, contra o mar e principalmente contra o seu navio. Um só
desejo, este frenético: voltar para terra.
Dentro de meia hora,
um outro barco, o «Pádua», partia para reabastecimento em St. John's:
—Queres ir no
«Pádua»?...
Os olhos do rapaz encheram-se-lhe de
aleluias...
Suturado o ferimento, preparei-o para a viagem com coagulantes e
analépticos. Chamava-se João. E foi para St. Johns, vi-o eu partir! Com uma delicadeza esquisita, os
companheiros levaram-no em braços até ao bote, que havia de o
conduzir ao outro navio: o rosto de cera, cinzentos os lábios, nos olhos febris
uma ânsia obstinada, às vezes um pavor gelado...
Adeus, João! Voltarei a encontrar-te? Que será de ti?... Pronto, ei-lo chegado ao
«Pádua»... Agora, içam o bote ... Ainda o vejo muito bem: na cabeça, um
carapuço infantil, dos que têm borla no alto... Adeus! Boa sorte, rapazinho!
Vejam com que alma
ele cravou a faca no peito!: Um moço tão jovem, tão grácil, quase belo?!... Que
Nossa Senhora te acompanhe, João! E não voltes! Não voltes! Não voltes!!
O mar não gosta de
ti, meu filho: Ele só quer aqueles que o dominam; e tu não podes. Não voltes para o
mar: esconde-te na noite fresca que nasce da sombra das árvores, mistura a tua carne
com a terra generosa e firme, deixa-te perder nos ares com o perfume da hortelã,
dos cravos e das laranjeiras em flor...
Não, não queiras voltar. E vai com Deus,
João!
*
Quando
regressámos ao «David Melgueiro», o mar estava mais bravo, a neve fustigava-nos com mais raiva, e a noite descia rápida.
Riscando a cinza negra deste mundo desolado, cortando céu e mar, um traço
rubro, indelével e sangrento: uma ferida de Sol-poente, nesta paisagem
vítrea...
in: NOS MARES DO FIM DO MUNDO, B. Santareno, Edições Ática, Lisboa, 1999.